Artigo retirado do site www.montessoriano.com.br.
Revista Pluriversitário, Salvador, Ano I, Vol. I, 2017 – Artigo Científico
Uma Dinâmica de Resistência Negra no Cabula
Janice de Sena Nicolin[1]
RESUMO: O projeto Odeart caracteriza as vivências de política social de afirmação da identidade negra no Cabula. É com iniciativas artístico-cultural e pedagógica iniciadas pelo Grupo Teatral Artebagaço que realiza a resistência negra à monocultura do saber e viver, a recusa dos valores etnocêntricos para afirmação dos valores pluriculturais africano-brasileiros. Compartilhar desdobramentos das pesquisas de mestrado e doutorado em educação que motivaram composição e fortalecimento da Associação Artístico-Cultural Odeart, como instituição de resistência negra no Cabula, é o objetivo deste artigo, que enfatiza a importante função social e histórica da memória da resistência negra na Bahia para consciência da ruptura do pensamento colonizado.
Palavras-chave: Resistência Negra. Cabula. Odeart. Educação pluricultural.
RÉSUMÉ: La conception Odeart présente les expériences de déclaration de polítique sociale de l’identité noire dans Cabula. Il est des initiatives artistiques, culturelles et éducatives initiées par le Groupe de Théâtre Artebagaço que effectue la résistance noire à monocultures da la connaissance et de vivre, le refus des valeurs ethnocentriques por l’affirmation des valeurs pluriculturelles afro-brésiliennes. Partagerles développements dela recherche de maîtrise et de doctorat em éducation que la composition motivée et le renforcement Odeart artistique-culturel, qui met l1accent sur la fonction sociale et historiqe importante dela mémoire de résistance noire à Bahia conscience de briser la pensée colonisé.
Mots- Clés: Résistance noire. Cabula. Odeart. Éducation Pluriculturelles.
1. INTRODUÇÃO
Neste artigo, a memória da resistência negra é tema guia das reflexões sobre a valorização das territorialidades sociabilizadas por africanos e seus descendentes com fundação de quilombos em Salvador até a primeira metade do século XIX. Estas territorialidades são lugares de preservação da história da luta negra pela liberdade. O Cabula é a territorialidade de referência das reflexões, lugar onde desdobram-se a experiência político-social, artístico-cultural pedagógica do Grupo Teatral Artebagaço de resistência negra nos espaços ocidentalizados da educação oficial.
A experiência Artebagaço, iniciada em 1996, como insurgência negra num colégio público no Cabula, a saber, Colégio Estadual Governador Roberto Santos, em 2007, expande para vários espaços, ao fundar a Associação Artístico-Cultural Odeart, entidade civil sem fins lucrativos para afirmação das identidades crianças e adolescentes de descendencia africana moradores do Cabula.
O objetivo do artigo é compartilhar alguns resultados dos estudos iniciados em 2000 fora do contexto acadêmico-científico com buscas de fontes da memória social da territorialidade Cabula desde os quilombos à contemporaneidade. O estudo foi acolhido no curso de Mestrado em Educação e Contemporaneidade da UNEB/PPGEduC, a ênfase nas buscas das referências de identidade cultural do GrupoTeatral Artebagaço foi guia das do estudo concluído em 2007. Uma nova etapa dos estudos foi acolhida no curso de doutorado do mesmo programa em 2012, desta feita, a ênfase foi na memória das narrativas orais dos moradores mais antigos do lugar, os modos e formas de narrar histórias do lugar que guardam a experiência africano-brasileira do passado ao presente.
Por uma questão didática, o artigo se organiza em quatro tópicos: De Artebagaço a Odeart: elos de comunalidade negra, aborda trajetória da iniciativa de resistência negra; O movimento agachado: a recusa do mesmo, aborda aspectos teóricos-metodológicos e epistemológico da trajetória da pesquisa; A resistência negra quebrando as amarras da servidão neocolonial, uma abordagem sobre as dinâmicas da resistência negra na escola; Arte, cultura e ciência: sentido de descolonização do pensamento.
2. DE ARTEBAGAÇO A ODEART: ELOS DE COMUNALIDADE NEGRA
A experiência Artebagaço, fundada por três educadores moradores do Cabula, reuniu, aproximadamente, 1000 mil estudantes do Colégio Estadual Governador Roberto Santos e de outros colégios públicos de Salvador entre 1996 a 2001, por uma pesquisa etnografica foi possível extrair, interpretar e compreender que as referências de identidade cultural do grupo se aproximavam dos valores dos grupos de caçadores ancestrais africanos, na língua ioruba, caçador quer dizer Odé. De 2002 a 2004, o grupo entrou em silêncio para reflexão, no entanto, em 2005, motivado pela pesquisa de mestrado, rompe o silêncio e inicia a dinâmica Artebagaço Odeart que deu origem à Asssociação Artistico-Cultural em 2007.
A nova experiência, entre 2008 a 2015, acolheu-se mais 1000 estudantes de colégios públicos de Salvador, moradores do Cabula, ser morador do Cabula e estudante da escola pública são condições para fazer parte do “grupo de pertencimento” (SODRE, 2010, p. 17). De forma indireta, já que a dinâmica é itinerante e circula em vários lugares: escolas e associação de moradores, são mais de 7.000 moradores partícipes das oficinasde criação e da platéia durante as apresentações dos espetáculos.
É importante destacar que o caçador Odé é provedor e protetor do seu povo e do território onde vive, deste entendimento nasce a expressão Odeart, arte de caçador ancestral africano. Já a expressão Artebagaço caracteriza a crítica ao mundo urbano-industrial, considerado um mundo de valores sociais produtores de bagaços existênciais, as desigualdades sociais impostas, principalmente à “população negra” (BRASIL, 2010). Por bagaços se entende a sujeição ao trabalho de baixa ou péssima remuneração, educação incapaz de preparar a pessoa para vida social com igualdade de oportunidade, resulta um conjunto de situação degradante imposta ao descendente de africano e aos povos inaugurais ameríndios. Na metáfora Artebagaço, arte expressa a pluralidade do grupo, bagaços são ações sociais unidimensionas etnocêntricas da ideologia ocidental.
O Grupo Teatral Artebagaço construiu elos de comunalidades durante a criação de 10 peças teatrais, nestes contextos dinâmicos, os diálogos sobre as desigualdades sociais da vida urbano-industrial, a denuncia da imposição dos valores da hegemonia ocidental, denominada pelo Artebagaço monocultura do saber e do viver das alteridades próprias e culturais, fortaleciam os sentidos de ressitência negra e a confiança nos valores herdados da memória negra enraizada no Cabula.
A temática do Grupo Teatro Artebagaço no curso de Mestrado em Educação e Contemporaneidade da UNEB/PPGEduC exprime a origem das distintas linguagens da territorialidade do estudo, comunica a experiência concebida e recriada num cenário artístico teatral, abordando a história e a tradição cultural africano-brasileira plantada no Cabula, o fruto deste estudo é o livro “Ecos que entoam uma mata africano-brasileira” (NICOLIN, 2014), destaca proposições pedagógicas que apelam para o repertório civilizatório africano-brasileiro, estabelece linguagens criativas para o cotidiano escolar visando à promoção do direito à alteridade própria dos jovens do Ensino Médio.
E mais: imprime a afirmação da educação pluricultural no âmbito do currículo escolar, especialmente na área de Língua Portuguesa: linguagens transdisciplinares e os elos interdisciplinares da escola, a exemplo dos elos que unem áreas de História à Arte, elos capazes de promover valores, estruturar dinâmicas das comunalidades africano-brasileiras e a reafirmação da memória da resistência negra na Bahia.
A expansão do estudo encontrou na tematica “memória da ancestralidade e da territorialidade negra” o impulso para realização da segunda pesquisa acadêmica no curso de doutorado no mesmo programa, pesquisa concluída em 2016. O resultado deste estudo intitulado “Kipovi Cabuleiro: Um Tom da Memória do Cabula” (NICOLIN, 2016) chegou a compreensão de que a consciência para valorização da memória negra implica no reconhecimento e valorização das territorialidades para resistência negra.
A palavra Cabula, Kimbula (CASTRO, 2008, 184) como é a grafia na língua africana quicongo, Ki (lugar) + mbula (partilhar) pode ser entendida por lugar de compartilhar legados plantados pela ancestralidade africana, lugar de preservação de bens simbólicos culturais da tradição oral africana e africano-brasileira. A pesquisa entendeu que o lugar de partilhar experiências das alteridades negras consistiu no fortalecimento da resistência negra e que a valorização da memória das territorialidades africano-brasileiras restitui e renova o sentido de afirmação das identidades e alteridades africano-brasileiras.
As iniciativas de valorização dos legados plantados, principalmente no Cabula, a exemplo das casas de matriz africana fundadas na primeira década do século XX, tais como: Ilé Axé Opô Afonjá no São Gonçalo, Terreiro Bate Folha na Mata Escura, o Terreiro Tumbenci no Beiru, fortalecem a pujança do dinamismo social e cosmogônico das casas de resistência negra, a memória das experiências da luta contra opressão do poder colonial e do Estado pode ser percebida nos cantigos guardados nestas casas.
Nos estudos de Narcimária Luz (2001), ao se referir à “casa grande, senzala e kilombo”, a pesquisadora mostra que o povo negro esteve em três espaços distintos durante a escravização colonial, contudo, o lugar da liberdade foi apenas no quilombo, o Cabula foi um lugar destes lugares de liberdade e de organização da resistência negra.
O sentido de memória negra, neste estudo, ancora-se no que destaca Hampaté Bâ (2010, 209) por memória africana: aquela de quem não se cansa de ouvir e contar a mesma história várias vezes. Neste sentido, a memória da resistência negra não está guardada nos livros empoeirados dos arquivos públicos ou de uma biblioteca, o passado da ancestralidade africana no Brasil está na consciência dos herdeiros dos valores sociais africano-brasileiros, “[…] o vínculo original da consciência como passado parece residir na memória’(RICOUER, 2007, p. 107), a consciência para luta contra opressão é uma herança, por isso é apenas a população negra que sabe falar com propriedade de resistência negra, está no corpo que guarda a memória social africano-brasileira.
E não adianta forjar ou forçar simulação da realidade vivida de opressão da população negra, a resistência é sentida a cada dia na pele, no suor derramado, na rejeição da pessoa por ser homem negro ou mulher negra, o respeito à memória da resistência negra imprime sentido de reconhecimento do importantíssimo patrimônio civilizatório africano: arte, religião, ciência, filosofia, educação, economia, política social, um conjunto de referências simbólicas que vivificam o cotidiano da Bahia.
A Associação Artístico-Cultural Odeart amplia a rede de luta contra o racismo e a hostilidade ao patrimônio civilizatório africano ritualizando suas dinâmicas africano-brasileiras iniciadas pelo Grupo Teatral Artebagaço, desta forma, imprime o sentido de valorização das identidades criança, adolescente, juventude negra e mulher negra e de continuidade civilizatória africana no Brasil.
3. O MOVIMENTO AGACHADO: A RECUSA DO MESMO
O estudo sobre a resistência negra exige uma experiência acadêmica teórico-metodológica cheia de cuidados, a “memória coletiva” (HALBWACHS, 2006) das populações negras não está guardada nos livros de história do Brasil, aquela história cujas fontes teóricas documentais são os escritos oficiais que não reconhecem as narrativas orais dos mais velhos das comunidades sociabilizadas por negros como fontes da memória histórica das populações de descendência africana.
A busca de fontes da historiografia da Bahia foi umas das primeiras realizadas nesta pesquisa para identificar a participação da população negra na Bahia, por se tratar de uma história narrada pelo olhar da colonização, percebeu-se, na historiografia do século XIX, a ocultação da presença do homem negro e da mulher negra como partícipes de afirmação da história do Brasil.
Alguns estudos do século XX e XXI, que afirmam fazer abordagem sobre a resistência negra, deixam lacunas e criam distorções na interpretação, a descrição dos contextos históricos detalha apenas situações de escravidão. Neste ponto, questiono: é possível realizar uma produção de conhecimento sobre a resistência negra tendo como únicas fontes os registros oficiais dos séculos XVIII e XIX? Qual o solo de origem destes registros? Como o estudo de uma territorialidade negra pode gerar sentidos de respeito à resistência negra e/ou da luta pela liberdade africano-brasileira?
Do que se sabe, no século XIX, estudiosos sobre o negro alicerçaram seus estudos nos procedimentos teóricos metodológicos das ciências naturais evolucionistas positivistas (LUZ, M., 1994, p. 19-21), tomaram o tema da escravidão para contextualizar suas pesquisas, a colonização foi o ponto de partida e de chegada, os cenários de torturas e humilhações do povo negro expressam fortes intenções de criar uma imagem de um povo subjugado e submetido ao poder colonial e, pior, sem oferecer resistência. Será que seguir este caminho consegue conhecer a luta dos africanos e seus descendentes pela liberdade existencial e político-cultural?
Ao colocar o negro como um subjugado ao regime colonial e imperial do Brasil, estes estudos apontam sinais de afirmação absoluta do poder colonial. Os escritos de uma pesquisa “desde fora” (SANTOS, 2008, p. 16), aqueles nos quais os pesquisadores desconhecem os contextos dinâmicos do povo estudado, não sabem o que realmente fazem e como se organizam estes grupos sociais e estruturam a vida social. Como se alicerçam em resultados extraídos dos documentos oficiais das freguesias (ligados ao poder judaico-cristão), da polícia da província e das instituições da Coroa Portuguesa (ligados ao poder colonial e imperial) coisificavam o povo negro e desqualificavam a cultura ancestral africana.
E, por um olhar de quem não vê uma pessoa, mas uma propriedade do senhor, estes estudos insistem em usar termos como: os escravos, a escrava tal para nomear e/ou definir uma nacionalidade inferiorizada dos africanos e seus descendentes. E mais: atualmente, embora conheçam o termo escravizado, que foi criado por estudiosos negros para expressar o sentido real de quem foi submetido ao regime de opressão e supressão da liberdade existencial humana, os estudiosos desde fora continuam usando os termos escravo e escrava como referência de identidade nacional do povo negro.
Tais estudos, ao se referirem ao sentido civilizatório do homem branco, usam o termo europeu e para nacionalidade: portuguesa, espanhola, francesa, inglesa, etc. Ao contrário, para o homem negro, engendra e generaliza com o termo escravo ou escrava, imprimindo uma distorção na palavra, atribui com novo sentido de referência civilizatória e de nacionalidade inferiorizadas. Nas sociedades com culturas de matriz africanas e dos povos inaugurais das Américas, escravo é um termo para designar o sentido de guerreiro perdedor da batalha ou alguém que tem dívida financeira ou material com outra pessoa, por isso teria que trabalhar para pagar a divida. Houve esta situação com os africanos trazidos ao Brasil do século XVI ao século XIX?
Este olhar, desde fora, produz um conhecimento com distorções e equívocos, “[…] a tradução que eu qualificaria de criminosa de certas palavras. Criminosa porque ela atenta contra a própria estrutura e a compreensão do sistema.” (SANTOS, 2008, p. 21). Não é surpresa identificar, no conhecimento progressivo, a partir da colonização, as narrativas de violência contra a população negra: derrubada de quilombos e prisão dos moradores, transcrição dos documentos oficiais que denominam os quilombolas de “delinquentes”, “criminosos”, “praticantes de pequenos furtos”, “povo rudimentar” e “ geste animalesca”, feiticeiros, expressões com intencionalidade de fortalecer a ideologia do racismo e de vários tipos de discriminações que forjam as desigualdades sociais.
Com muito cuidado, foi observado que, nestes estudos, desde fora, há uma insistência em afirmar que sua abordagem temática é a resistência negra. Indaga-se. Há resistência sem luta? Como afirmar a abordagem temática da resistência negra se as narrativas de violência orientada pelo racionalismo de exacerbação do solo colonial silenciam os sinais da luta negra contra a hostilidade colonial?
É fazendo à recusa do mesmo solo de origem destas pesquisas que brotou a perspectiva metodológica do Movimento agachado, uma dinâmica intrínseca que se pôs durante as trilhas do “vivido-concebido” (LUZ, 1994, p. 55) e propôs à pesquisadora que vos fala um caminhar na mata. Destaca-se que a mata compreende o lugar do desconhecido, o conhecimento a ser alcançado. O Movimento agachado propõe cuidado com cautela e respeito, a mata é o lugar de memória da ancestralidade africana e africano-brasileira, seu acesso se deu ao mergulhar nas narrativas de memória dos antigos moradores do Cabula e nos estudos teóricos sobre a história e culturas da África, dos africanos e seus descendentes do Brasil.
Para mergulhar na mata, o primeiro movimento foi fugir de todas as armadilhas citadas, aquelas que têm absoluta obediência ao racionalismo progressista. O Movimento agachado brota das buscas iniciais na obra Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira (LUZ, M.A., 1995/2013) que abriu os caminhos para o encontro com o passado ancestral em África e no Brasil, a coleção em oito volumes de História Geral da África (UNESCO/MEC, 2010) ampliou o conhecimento histórico civilizatório da África, foi uma referência de valor histórico inigualável.
Acresce-se a este movimento a caminhada na obra Abebe: a criação de novos valores para educação (LUZ, N., 2000) e nos vários artigos dos cinco volumes da Revista Sementes: cadernos de pesquisa do PRODESE – Programa Descolonização e Educação-UNEB, organizado por (LUZ, N., 2000-2005). Neste acervo, foram encontradas referências de duas obras de Frantz Fanon: “Os condenados da terra” (1965) e “Peles negras e máscaras brancas” (2008) que alimentaram a formação de uma consciência para descolonização, gerou uma reflexão profunda da situação neocolonial das atuais políticas públicas do Brasil que regulam a educação escolar.
Caminhar na mata é se movimentar com gestos cautelosos, delicados e habilidosos como faziam os caçadores ancestrais africanos na floresta ancestral, como fazem os atuais caçadores das sociedades tradicionais africanas, caçar é uma das primeiras manifestações humanas, metaforicamente o movimento agachado é a caçada de um fazer ciência, é a manifestação de quem caça elementos do signo e dos símbolos culturais guardados no território invisível da memória coletiva dos sujeitos da pesquisa e da pesquisadora, nesta mata só caça o que é permitido pela tradição africana.
É bom saber que a mata é o lugar da memória ancestral guardada no corpo do testemunho oral, herdeiro deste passado transmitido do mais velho aos mais jovens. O questionamento de Hampaté Bâ: “Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos, como no próprio indivíduo?” (2010, p. 168), é uma crítica à ciência que só valida fontes com documentos escritos, o testemunho oral é o detentor do conhecimento transmitido de boca a ouvido, um conhecimento milenar.
A recusa ao racionalismo absoluto progressista se pôs desde os estudos teóricos, nos levantamentos de fontes para compor a fase da pesquisa documental, muitos conceitos, ou melhor, preconceitos ideológicos de base positivista, criavam obstáculos ao estudo na fase inicial, eram as “bases teóricas do estereótipo” (LUZ, 1994, p. 19) do negro: a percepção dicotomizada da cultura negra, equívocos na abordagem entre diferença e desigualdades, a desculturação, tentativa de inferiorizar todos os valores e referências de identidade da cultura negra, a repressão ideológica, tentativa de deslegitimar linguagens e conhecimentos milenares da África, é o embranquecimento.
Conhecer as bases teóricas do etnocentrismo é forma de ruptura dos obstáculos ideológicos evolucionistas que caracterizaram as civilizações africanas e indígenas como objeto de ciência, decerto forma de controle da produção do conhecimento e visão empirista que transforma pessoas em coisas. Ao estudar o contexto simbólico-cultural, os caminhos, que fragmentavam, esquadrinhavam o negro e sua cultura, foram evitados, já que criavam equívocos e provocavam o reducionismo e distorção da cultura.
Nos estudos de campo, houve uma atitude de alerta às armadilhar dos obstáculos ideológicos etnocêntricos, começaram os diálogos com as perspectivas metodológicas “Desde dentro para desde fora” (SANTOS, 2002, p. 16-18) e “Dialética vivido-concebido” (LUZ, 1994, p. 55). A perspectiva “desde dentro para desde fora” orienta ao pesquisador de uma cultura desconhecida a se abrir ao “[…] desenvolvimento iniciático” (SANTOS, p. 18), manifestação do pensamento para ver e interpretar os elementos dos símbolos dos valores culturais, concepções de vida e relações entre o visível e invisível.
Por esta perspectiva, surge o entendimento: a observação desde dentro agiliza a crítica e a rejeição aos modelos unidimensionais e universais. Caminhos intrínsecos, por se tratar de referências que se encontravam na memória pessoal da pesquisadora, passado e presente, memória coletiva da pesquisadora, educadora e moradora do Cabula, foram banhados pela emoção de viver o passado ancestral nas narrativas orais que, ao mesmo tempo, dialogavam com a racionalidade de uma pesquisa desapegada das imposições universais, a “Razão sensível” (MAFESOLI, 2002). E foi preciso para compreender as vivências seminais do passado ancestral na contemporaneidade.
Para Santos (2008), há três níveis no desenvolvimento iniciático: factual, revisão crítica e interpretação simbólica. No nível factual, o pesquisador pode ver e extrair o símbolo e as referências históricas das vivências. Na pesquisa, o símbolo mais estudado foi o caçador ancestral, no nível factual se conheceu o solo de origem, as relações sociais do grupo de pertencimento cultural, os emblemas ou objetos rituais, as cores, os gestos da caça e do caçador, as músicas do contexto.
No nível da revisão crítica, um levantamento da semântica que orienta o discurso teórico-epistemológico evitou uso de muitas expressões que poderiam desqualificar os sujeitos do estudo e seu grupo de pertencimento cultural, tais expressões foram colocadas em suspense para depois retirá-las da “bacia semântica” (DURAND, 1965) que enriquece o discurso epistemológico. Logo, no lugar de usar os termos “escravo” e “feiticeira” adotou-se os termos escravizado e mameto (zeladora de inquice) na língua banto e yalorixá (zeladora de orixá) na língua ioruba.
No nível de interpretação simbólica, foi possível tornar todos os elementos dinâmicos, que foram descritos no nível factual: objetos, emblemas, dança, música, as relações sociais, em contextos funcionais dos ritos que caracterizam as vivências seminais de um grupo de pertencimento cultural. “O nível de interpretação simbólica permitiu-me penetrar, abarcar e tornar inteligíveis certos aspectos dos dados factuais que não poderiam ter apreendido de outra forma.” (SANTOS, 2008, p. 25).
O Movimento agachado tornou mais agradável as etapas da pesquisa: bibliografia, documental e campo (TRIVINOS, 2006). Assim, seleção dos documentos escritos, iconográficos e gráficos, tipo de entrevista, seleção dos entrevistados, escolha dos instrumentos para gravação, forma de transcrição das gravações e o mapeamento temático, foram etapas orientadas pelo Movimento agachado.
Quando uma pesquisa exige uma abordagem que se aproxima ao máximo dos contextos dinâmicos, seguir esquematismos acadêmico-científicos, as metodologias do já dito, é perigoso e corre-se riscos de não realizar a pesquisa devido ao estado de servidão metodológica e epistemológica aos modelos universais. A “recusa do mesmo” (MAFFESOLI, 2007) não significa romper com o rigor da ciência, ao contrário é uma forma de caminhos metodológicos que dialoga e respeita o universo simbólico cultural dos sujeitos do estudo, é o desapego aos imperialismos cientificistas.
O Movimento agachado inspira-se no movimento de uma noviça na tradição oral, muzenza na tradição congo-angola, iawô na tradição nagô-ioruba. A noviça na tradição oral se curva diante de quem tem o milenar conhecimento da cultura ancestral e, introspectamente, entra num contexto de “pedagogia negra” (LUZ, M. A., 2013, p. 51) para viver e conceber a experiência durante as narrativas míticas que guardam os princípios e valores sociais plantados pela ancestralidade africana e africano-brasileira.
4. A RESISTÊNCIA NEGRA QUEBRANDO AS AMARRAS DA SERVIDÃO NEOCOLONIAL
A Odeart, criada em 2007, teve a função de ampliar as linguagens artístico-culturais do Grupo Artebagaço, expande da forma de teatro para acolhimento da dança afro, da música, da literatura com recitais de poesia e saraus, festivais de cultura negra, seminários e rodas de diálogos nas escolas, nas associações de moradores e nos grupos de mulheres do Cabula, compõe a Rede de Mulheres Negras do Norte e Nordeste com ações de instituição mista, a direção com mulheres, mas há participação de homens em outras funções de relevância na instituição.
Com três iniciativas de enfrentamento do racismo, machismo e de várias formas de discriminação, organiza a resistência negra no bairro do Cabula. As iniciativas são: Biuá (na língua ioruba quer dizer nasceu para nós) para crianças e adolescentes; Oba dê Adê (a rainha está com a coroa), para mulheres, Oba quer dizer rei na língua ioruba, título com simbologia masculina, a Odeart ressignifica a palavra Oba atribuindo o título também à mulher guerreira que luta pelos seus direitos e dos seus filhos; Erí Okán (na língua ioruba quer dizer consciência) para dialogar com a juventude negra sobre a consciência para memória negra e de luta contra o extermínio de jovens negros.
Estas iniciativas ancoram-se no conceito de educação pluricultural (LUZ, 2000; 2012), ressignifica o sentido de pluralidade que caracteriza o universo simbólico africano-brasileiro herdado da tradição africana de diversos povos e etnias do reino Kongo (bacongo, ambundo, umbundo), jeje do reino Daomé, nagô do reino Ioruba.
O reconhecimento da pluralidade se dá ao perceber que vida transcorre no solo de origem do jeito que ela é, polissêmica, cheia de contradições e antíteses existenciais, embora no solo hegemônico ocidental da escola os grilhões verbais impostos tentam silenciar os corpos dos descendentes de africano e, para controle do dinamismo, as palavras da língua padrão oficial atuam como “gaiolas” da “Pedagogia da servidão neocolonial” (NICOLIN, 2014, p. 105).
Foi num cenário de recalque cultural que nasceram a resistência do Grupo Teatral Artebagaço e a Associação Artístico-Cultural Odeart atuando na quebra dos grilhões que aprisionam os corpos do estudante africano-brasileiro e rasga as amarras verbais do “silenciamento” (ORLANDI, 2002). Através dos ecos de Diego Nicolin, um dos três educadores que fundou o Grupo Teatral Artebagaço, é possível perceber como foram realizadas as vivências artístico-pedagógicas com estudantes do curso de Magistério, Lei 5692/71, período entre 1991 a 1995, fase considerada Pré-Artebagaço:
“Precisávamos instrumentalizar o aluno para que ele pudesse fazer algo próprio. É inútil colocar uma caneta na mão de uma criança, provavelmente ela não irá escrever Hamlet [sorri sorrateiramente], precisa, pelo menos, ensiná-la a segurar a caneta, antes de ela produzir algo, e trabalhar com experimentos. Entre as “loucuras” [sorri outra vez] que foram feitas, surge a idéia: por que a gente não monta uma peça? Foi escolhido um grupo de Magistério e a adaptação de Monteiro Lobato, “Emília no País da Gramática”.
Nossa inexperiência era total, não tínhamos nenhuma base cênica, nem nada, o que a gente tinha era garra e vontade de fazer, que acho que seja a coisa mais “importante”; e ali pegamos o texto, adaptamos, remodelamos, usamos mais ou menos as mesmas personagens que Lobato usou, criamos novas, retiramos outras, fizemos aquelas coisas que um grupo de alunos [ele fala de estudante de teatro] fazem quando vão montar uma peça. Eu diria, com os olhos de hoje, que aquela peça foi extremamente banal, extremamente simplória. Não tinha nada de inovativo, pois tinha os esquemas que a escola queria, que o mundo acadêmico até propõe sob certos aspectos, mas era um grande experimento. Isto foi feito nos intervalos de aula, valendo nota. E por quê? Conceito nosso: “O aluno só faz isto por nota. Se não for por nota ele não faz”. Ali nos olhamos na cara e pensamos: Será que é mesmo isto? Nasceu o desafio. Vamos tentar fazer algo que não seja pra nota. (Diego, 2004).
Esse momento que Diego descreve corresponde ao início da quebra dos “grilhões”. Na realidade, havia um trabalho em sala de aula do qual Diego não participava, por não ser um educador do Colégio Governador Roberto Santos – CEGRS, instituição de inserção negra, sua atuação era de representante da comunidade do Cabula, o trabalho consistia em motivar alunos e alunas[4] a fazer algo diferente do que lhe fora pré-ditado, o que seria rasgar a reprodução do que ouvia e do que via no quadro de giz. Motivação que impulsionava o uso das variedades linguísticas[5] e contemplam as expressões pluriculturais herdadas dos povos inaugurais e africanos do Brasil.
Nestes encontros, observou-se que os obstáculos ideológicos etnocêntricos atuam na mente do estudante como um comando eletrônico num robô, desde cedo, ele aprende que tudo que faz na escola deve ser copiado e reproduzido sem tirar nem por, sobretudo entende que tudo isto resulta em nota (avaliação quantitativa), logo, “tudo” se desdobra na busca desta nota, talvez seja este pensamento que cria os obstáculos à implantação de um significado pelo processo de aprendizagem.
Quebrar este ritmo exigiu várias estratégias aos futuros educadores. Durante os ensaios, foram realizadas atividades de desmecanização dos corpos rígidos e estáticos dos estudantes que ficavam sempre sentados na cadeira. Eram os jogos cênicos e as oficinas de teatro. Inicialmente, todos ficavam sentados nas cadeiras, educadores e estudantes, depois passaram a sentar no chão ou na cadeira, onde queriam, ficavam descalços ou não, gritavam, gargalhavam, sorriam, às vezes, olhavam uns aos outros como se vissem pela primeira vez ou como se vissem todos os dias. O reconhecimento das potencialidades corporais vinha aos poucos e a desmecanização dos “corpos dóceis” (FOUCAUT, 2004, p. 117) ampliava com a descolonização do pensamento.
É importante entender que neste ato de motivação da espontaneidade corporal surge a possibilidade do que Paulo Freire[6] denomina “leitura do mundo” e “leitura da palavra”. A descoberta das potencialidades de quem antes era recalcada/o por falta do entendimento, consistiu no conhecimento e liberdade do aprendizado no cenário escolar. A montagem cênica a partir da obra de Lobato foi para desconstruir cenários de visão de subjugação da mulher negra com função social de subalterna e coisificada através da personagem Tia Anastácia, embora o argumento principal fosse crítica à norma padrão.
Em todos os encontros, antes da leitura, a proposta era: a dinâmica de falar de si mesmo, dos relacionamentos familiares, conjugais, da vizinhança, dos gostos ou não gostos. E tudo isto implicava uma dinâmica socioexistencial, assim corpo e mente e se apropriando do conhecimento de si e do grupo de pertencimento comunitário e social. Pensem bem: antes estas pessoas não criavam, apenas copiavam o que lhes disseram ser única verdade e método de aprendizado.
Desta forma, o grupo foi crescendo e, com o tempo, passaram a realizar encontros nas casas de uma e de outras, e os ensaios eram feitos no curso Jansen, de propriedade de Janice e Diego Nicolin, já que no colégio os obstáculos como perda da chave do espaço, reclamações da quebra do silêncio no colégio; “fazem zuada”, tentavam impedir as oficinas de teatro. Decerto que não fora descartado o uso do espaço no colégio, já que era uma atividade de insurgência da comunidade negra na escola.
No entanto fazer “insurgência negra” (LUZ, 2013, p. 365) é ter a consciência para luta da libertação e empoderamento do negro, é poder criar várias formas de reafirmação da centenária resistência negra no Brasil. É por isso que este estudo entende o ocultamento desta realidade, ao dizer que não há documentação oficial ou fontes oficiais que descrevam estas lutas, estratégia de ocultação da realidade para dar destaque a hegemonia colonial e suas ações de inferioridade do povo negro.
Estudos como a Revolta dos Búzios (TEIXEIRA, 2010) e Rebeliões dos Malês (REIS, 2003) mostram o contrário, mesmo apontando a prisão de rebelados negros, destruição de quilombos, a visão epistemológica aponta caminhos da luta, uma descrição densa das mobilizações da resistência negra do século XVIII ao século XIX: organização dos levantes, panfletagem, caminhadas para mobilização do povo.
É assim que age a resistência negra, mobilizando o povo negro. A insurgência do Pré-Artebagaço se fortaleceu e cresceu de 35 estudantes, de uma turma em 1991, para 120 de três turmas em 1992, a realização dos ensaios passou do colégio para laje da casa de Janice e Diego Nicolin, pois no colégio, na época, alegava que esta atividade mudava o ritmo escolar, logo não tinha espaço para realizar tais iniciativas pedagógicas.
A obtenção de nota foi perdendo sentido até 1995. Na realidade, as estudantes que participavam queriam libertar seus corpos e ganhavam confiança expressando-se de acordo com os conhecimentos que adquiriam dentro e fora do colégio; poucas queriam a nota, contudo tinham outras estudantes cujos corpos sofreram as ações mais intensas da reprodução e queriam práticas de leitura e escrita mecânicas, teste e prova com objetivo de obtenção da nota.
É importante dizer que, à proporção que o corpo se soltava, ganhava mais elasticidade e o crescimento da expressão verbal do ator social era visível, por exemplo; havia textos mais complexos que outros, logo no início, algumas estudantes recuavam diante desses textos. Contudo, quando uma ganhava mais confiança em si mesma dizia: – “Janice, posso pegar aquele texto tal? Quero ver se consigo”. E tentava.
Diego[7] não pode acompanhar de forma tão intensa quanto Janice[8] que acompanhava a restituição da vitalidade dos corpos das estudantes de Magistério também em sala de aula. Foram três turmas que concluíram curso em 1993, 1994 e 1995. Todos as/os estudantes, no primeiro ano, formavam a “cortina de silenciamento”, o não poder falar, o medo, o temor de serem repreendidos, desqualificados, subjugados. Eram corpos recalcados e alienados de si mesmos.
No segundo ano, a expressão corporal ganhou realce: era o pisar firme no chão, levantar-se para ir ao quadro escrever ou para se sentar ao lado de outra colega. No terceiro ano, quando preparavam a peça teatral, com a experiência da dramatização, o corpo, que dialogava com a voz interior, exteriorizava o que fora elaborado nos ensaios, por isso, voz e corpo andavam lado a lado, confiantes em si mesmos. Era a estética da linguagem pluricultural afirmando a alteridade no âmbito de linguagem oral e escrita:
O domínio de uma nova linguagem oferece, à pessoa que a domina, uma nova forma de conhecer a realidade, e de transmitir aos demais esse conhecimento. Cada linguagem é absolutamente irresistível. Todas as linguagens se completam no mais perfeito e amplo conhecimento real. (BOAL, 1991, p.137).
Para Janice e Diego, a luta tinha como meta transformar o que Foucault denunciou por “corpos dóceis” (2004, p.117) em corpos com vitalismo próprio da comunalidade do Cabula. Para tal, partiam da percepção de que, na escola o indivíduo está sujeito a condições deploráveis de obediência aos esquematismos pedagógicos etnocêntricos, que cumprir sem reflexão crítica é sujeição à pedagogia da servidão neocolonial, cujo objetivo é tornar a pessoa num “sujeito produtor e consumidor” (LUZ, N., 2000, p.52). Acordar o corpo é quebrar as amarras da servidão neocolonial.
É importante dizer que o sujeito do estudo da geração Pré-Artebagaço formava um corpo discente do curso de Formação do educador com habilitação para 2º grau, Lei 5692/71, e pior: eram futuros educadores em treinamento para imposição de ações que fortalecem o racismo, etnocentrismo e a ideologia do embranquecimento na escola.
5. ARTE, CULTURA E CIÊNCIA: SENTIDO DE DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO
Arkhé é uma categoria que encontramos no acervo do PRODESE[9] para ancorar o entendimento de educação pluricultural. O PRODESE guarda um acervo do patrimônio civilizatório africano e africano-brasileiro com obras de autores a exemplo de: Narcimária C.do P. Luz, Mestre Didi Axipá, Marco Aurélio Luz, Muniz Sodré, Juana Elbein dos Santos, Ana Rita Santiago, Lea Australiana, Ronaldo Martins, Janice Nicolin, Sérgio Ricardo da Silva, Mille Caroline, estes estudiosos entendem que:
Arkhé corresponde aos princípios inaugurais que imprimem sentido, força, direção e presença à linguagem, recriando as experiências. No seio da Arkhé estão contidos os princípios de começo-origem e poder-comando, e não deve ser associado a antiguidade e/ou anterioridade, a exemplo de um passado rural, não-tecnológico e mesmo selvagem. A arkhé também está referida ao futuro, caso, principalmente, não se entenda como o vazio de onde se subtraem as tentativas puramente racionais de apreensão, mas como algo que se projeta na energia mítica, renovando valores que dão continuidade à linguagem característica do sistema histórico cultural da comunidade (SANTOS, SANTOS, 1993, apud. LUZ, N., 2000, p.106).
A palavra arkhé para Muniz Sodré (2002) carrega a noção “cultura negra”, caracteriza as dinâmicas africanas de comunalidade. Na realidade é a tradição plantada pela ancestralidade africana que se renova a partir dos investimentos de recriação da linguagem herdada no contexto de pluralidade, um paradoxo aos olhos de quem vê com um “olho só”, o unidimensionamento sugerido por Platão aos humanos em “O mito da caverna” (2006)[10]. Na cultura de arkhé, o olhar é amplo e acolhedor da diversidade existencial.
Com efeito, “Arkhé traduz-se também por tradição, por transmissão da matriz simbólica do grupo […] Mas tradição não implica necessariamente a idéia de um passado imobilizado, a passagem de conteúdos inalterados de uma geração para outra.” (SODRÉ, 2002, p.170), a noção de cultura de arkhé traz o entendimento de tradição que é possível ver na relação da arte e o conhecimento da África construía nos cenários artístico-pedagógicos, há um diálogo entre a arte e a ciência na produção cênica.
Foi a arkhé que dinamizou as diversas manifestações de linguagem que devolveram a espontaneidade criativa e o vitalismo do corpo dos 395 estudantes de Magistério, nos cinco anos de vivência Pré-Artebagaço. Assim como dinamizou os 2000 participantes da experiência de resistência negra do Artebagaço à Odeart. A arkhé é a força mística herdada do ancestral que plantou a atitude guerreira de lutar contra a hostilidade cultural africana e a favor da liberdade das alteridades própria e cultural.
Arkhé constitui um símbolo de ancoragem no enfrentamento ao cenário hostil urbano-industrial e se encontra no grito de afirmação da identidade africano-brasileira guerreira contida na crítica do Artebagaço que deu origem a Odeart. Os ecos de Gilmara Cruz, adolescentes da geração Artebagaço Odeart, moradora da Engomadeira, enuncia o ethos que caracteriza sua identidade civilizatória africana:
Cultura pra mim é o cabelo [pega em suas tranças] que certa ”gente” diz que é feio, é cabelo duro lá em cima, é a sandália de couro que a gente usa, ganhei uma novinha! [Há, há, há!]. É a discriminação que a gente passa quando vai arrumar um emprego [fecha o sorriso e bate os dedos das duas mãos uns nos outros, torce a boca ao falar], é a exigência de uma foto, é…. [joga o olhar para o teto, respira, olha em nossa direção profundamente e recomeça]. É o conhecimento que a gente tem que não é o mesmo da escola. É nada do que a escola nos ensina. [Outra parada. Olha para seus pés, olha para rua e sorri]. É o meu bairro… (Gilmara Cruz, 2005).
Gilmara é uma das jovens que resiste ao que Marco Aurélio Luz (1994) atribui à noção de “ideologia do recalque”. Nos ecos da adolescente, há uma abordagem crítica e sarcástica (observem a gargalhada), há um tom irônico ao tratar das formas ideológicas recalcadoras e uma atitude de quem faz questão de afirmar sua cultura de arkhé africana como sinal de desmistificação da estigmatização.
Gilmara também já sabe, pois aprendeu durante as vivências do grupo, que os discursos ideológicos de recalcamento existem para que o descendente de africano acredite na existência desta inferioridade, é assim que o africano-brasileiro torna-se alvo da “dominação política, cultural e étnica.” (LUZ, 1994, p.21) e submete-se à política do embranquecimento. Os participantes da Odeart ao conhecer as “bases do estereótipo” de inferioridade, criam as estratégias de preservação da tradição de luta pela liberdade existencial e político-cultural.
Os ecos têm esta função de atuar dentro e fora do cenário da “mata”, por isso é importante os aprofundamentos da crítica às produções etnocêntricas do racionalismo progressista, para que entenda por que os ecos da poética mítico-africana são expressões de comunicação da Odeart, tal como os ogé simbolizam o poder de comunicação de Odé, caçador, dentro e fora da “mata”.
Os ecos da Odeart, quando nascidos e alimentados dentro da “mata africano-brasileira” (NICOLIN, 2014), lugar de resguardo da cultura de arkhé africana, têm a função de alimentar, proteger e expandir possibilidades de afirmação das alteridades do Cabula, quando fora, os ecos têm a função de proteger para realizar a defesa territorial, o enfrentamento ao genocídio do povo negro e a recusa ao pensamento colonizado.
No Brasil, estudos como os de Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento, Clovis Moura, Roger Bastide, Florestan Fernandes, Milton Santos, Marco Aurélio Luz, Muniz Sodré, Henrique Cunha, Lélia Gonzalez, Petronilha Silva, Narcimária Luz, Inaicyra Falcão, Ana Célia da Silva, Luiza Bairros, Sueli Carneiro, Nilma Lino Gomes, Nadir Nóbrega e outros têm motivado as novas gerações desmistificando o que o evolucionismo e o positivismo engendraram como política de animalização ou de objetivação dos povos africanos, das mulheres negras e dos povos inaugurais das Américas.
Sem dúvida alguma, esses esforços de estudo impulsionaram a ultrapassar os obstáculos ideológicos do etnocentrismo que favoreceram a recriação da estética de mosaico pluricultural, um cenário em “[…] que o afro-brasileiro só pode ser entendido dentro de uma trama que o liga à sociedade como um todo” (BASTIDE, 2002, p. 52), constituída de esforços do passado guiando o futuro.
Roger Bastide (2002, p.52) afirma: “É assim que a sociedade brasileira deve ser estudada, como uma sociedade pluralista de agora em diante, mais do que uma série de segmentos separados, incluindo um bem separado segmento negro”. É assim que os cenários são entendidos na Odeart, como uma expressão de pluralidade cultural que reconhece no paradoxo da existência social a alteridade negada pela ideologia ocidental.
É em “Entoando o aiyê” (NICOLIN, 2014) que a linguagem verbal da montagem Odeart cumpre sua função de revelar um dizer de dentro para fora e denuncia a política etnocêntrica do recalque cultural do africano-brasileiro no espaço moderno institucional do sistema público de ensino médio. Neste espaço, a vivência mostra como se realiza a desculturação dos valores africano-brasileiros e dos povos inaugurais do Brasil no solo urbano-industrial e, por uma “episteme africano-brasileira” (LUZ, 2013), orienta o que favorece a quebra dos grilhões ideológicos e a criatividade que alimenta a estética dos valores da ancestralidade africana.
Aiyê é uma palavra de origem iorubá, língua que os ancestrais da atual República de Benin e da Nigéria, no final do século XVIII, trouxeram à Bahia como referência linguística de comunicação e de interação social da territorialidade africano-brasileira. Félix Ayoh’Omidire (2004) atenta para um riquíssimo dado da herança linguística e cultural africana na Bahia:
Sendo que as múltiplas “nações” oriundas do estoque lingüístico cultural fundado por Oduduwa, o pai da nação iorubana cujos netos se espalharam pelos quatros pontos cardeais para fundar cidades-reinos, acabaram se identificando individualmente como Ifè, Ègbá, Ìjèbú, Èkitì, Òyó, Ìgbómina, Sèpètèrí, […] cada cidade-reino reunindo outras pequenas cidades e povos distribuídos ao seu redor, falando um dialeto da língua Yorùbá que ao mesmo tempo servia para identificar os integrantes da nação que reconhecia a autoridade do seu rei-fundador cuja linhagem exercerá para sempre a autoridade tradicional sobre os súditos […] (AYOH’OMIDIRE, 2004, p.56).
O aiyê é uma referência de espaço onde se desdobram as cenas comunais vividas e, neste aspecto, a língua iorubá é o que une e identifica a referência civilizatória dos povos nagôs do Brasil. Vejamos como Juana Elbein dos Santos (2002b, p.53) descreve a concepção de mundo dos povos nagôs:
Os Nagô concebem que a existência transcorre em dois planos: o aiyê, isto é, o mundo, e o orun, isto é, o além. O aiyê compreende o universo físico concreto e a vida de todos os seres naturais que habitam, particularmente os ará-àiyê ou aráyé, habitantes do mundo, a humanidade. (p, 53)
A concepção vitalista da existência nagô estabelece-se numa relação de equilíbrio entre estes dois mundos inseparáveis: aiyê e orun que intercambiam poder de força vital que é o axé, para o povo congo-angola é o muntu: “Axé é um conceito que exprime a idéia de forças circulantes capazes de engendrar a criação e a expansão da vida” (LUZ, M.A., 1995, p.35). Neste espaço, a língua materna é a língua da comunicação usada nas territorialidades africano-brasileiras, embora nos contextos de educação neocolonial seja ignorado este aspecto tão importante para coexistência.
6. CONCLUSÃO
A resistência negra é a maior herança do descendente de africano em qualquer lugar fora do continente africano. O uso da palavra nas línguas africanas é uma forma de resistência na Odeart, a descolonização do pensamento colonizado se afirma pelo uso de uma estética Odeart, cujos títulos dos espetáculos, projetos, reuniões e várias atividades trazem expressões nas línguas africanas, uma atitude de reconhecimento e valorização de legados herdados.
Nos resultados, as pesquisas citadas chegaram ao entendimento que um acervo sobre a memória negra se expande aos poucos, é desta forma que o Grupo de pesquisa em arte, cultura e educação da Odeart vai ampliando o conhecimento sobre cultura, raça e gênero com ênfase no povo negro. O novo caminho é a ampliar do conhecimento das línguas africanas herdadas, a exemplo da língua fon dos povos jeje e das línguas quimbundo, quicongo e umbundo dos povos congo-angola, povos que, assim como os iorubas, foram responsáveis pela transmissão dos valores culturais do patrimônio civilizatório africano no Brasil, da expansão da história da África no Brasil, referências estruturantes das perspectivas de educação para relações étnico-raciais.
O acesso ao conhecimento da resistência africana é de grande importância para afirmação de muitas crianças, adolescentes, jovens e mulheres de descendência africana, o Brasil é uma nação plurilíngue e pluricultural e nada há de mais legítimo do que utilizar expressões das línguas africanas para homenagear os feitos de coragem dos ancestrais que implantaram a resistência negra nas Américas, assim como a reafirmação de uso dos topônimos de línguas africanas fortalece a preservação da história e da memória negra, a exemplo de Cabula, territorialidade sociabilizada por africanos e seus descendentes.
NOTAS
[1] Doutora em Educação e Contemporaneidade e Mestra em Educação e Contemporaneidade (UNEB); Licenciada em Letras Vernáculas com Francês (UFBA); Especialização em Educação Infantil (UNEB); Licenciada em Pedagogia (FVC); Professora de Língua Portuguesa do Estado da Bahia, Professora da Faculdade Montessoriano de Salvador; Teatróloga; Fundadora do Grupo Teatral Artebagaço e da Associação Artístico-Cultural Odeart; Coordenadora Geral e Diretora de Pesquisa em Educação, Arte e Cultura da Odeart; Membro da Rede de Mulheres Negras do Norte e Nordeste; Pesquisadora do Programa Descolonização e Educação UNEB/CNPQ; Membro do Grupo de Pesquisa Memória da Educação na Bahia (UNEB).; Autora da obra Ecos Que Entoam Uma Mata Africano-Brasileira; Co-autora da Obra Descolonização e Educação: Diálogos e Proposições Metodológicas. E-mail: janicesnicolin@gmail.com.
[2] No império Nagô até o século XVIII antes de sua queda, na capital Oyó, havia o culto a cada orixá patrono de cada reino que compõe a totalidade do império, que implica respeitar a cultura do lugar. Na Bahia, esta totalidade forma a pluralidade africano-nagô.
[3] Pedagogia da servidão neocolonial – categoria criada na pesquisa Artebagaço Odeart (2007) para fazer referência a falta de posicionamento crítico dos educadores que cumprem as normas do cenário urbano-industrial sem refletir sobre o cenário de neocolonização e suas consequências negativas ao recalque das alteridades próprias e culturais.
[4] Em cada turma, sempre, havia um estudante em meio a várias estudantes
[5] Ver BORTONI-Ricardo, S.M. DETTONI, R. Diversidade Linguística e Desigualdades Sociais: aplicando a Pedagogia culturalmente sensível. Campinas, Mercado das Letras, 2001, p. 82 – 83.
[6] Ver A Importância do Ato de Ler: em três artigos que s completam. São Paulo. Cortez, 2006
[7] Diego Nicolin era morador do Cabula convidado por Janice para realizar a direção cênica, depois deste trabalho foi fazer Direção Cênica na Ufba, atualamente é Doutor em Dramaturgia pela Ufba.
[8] É a mesma voz desta pesquisa que precisa de recursos para clareza etnográfica.
[9] Programa criado em 1998 no Departamento de Educação da Uneb/Campus I/ UNEB/ PPG/ CAPES que motiva novos pesquisadores que dedicam-se aos estudos sobre o patrimônio civilizatório africano-brasileiro e a descolonização da educação.
[10] Livro VII (A República).
[11] Ver em Juana E. Santos (2008, p. 53-58 ) e Marco Aurélio Luz (1995/2013, p.34-35).
REFERÊNCIAS
AYOH’OMODIRE, Félix. Pèrègún e outras fabulações da minha terra: contos cantados iorubá-africanos. Apresentação Florentina Souza. Prefácio à primeira edição Marco Aurélio Luz. Salvador: Edufba, 2006.
BASTIDE, Roger. O estado atual da pesquisa afro-americana na América Latina. Sementes: Cadernos de pesquisa, Salvador: Uneb, v.3 n.5/6, p.43-52, jan./dez. 2002.
BOAL, Augusto, Teatro do oprimido: e outras poéticas políticas, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
BORTONI-Ricardo, S.M; DETTONI, R. Diversidade Linguística e Desigualdades Sociais: aplicando a Pedagogia culturalmente sensível. Campinas: Mercado das Letras, 2001, p. 82 – 83.
BRASIL. Governo Federal. Lei 5.692/71. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, DF: MEC, 1971.
BRASIL. Governo Federal. Lei 10.639/2003. Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e Para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF: MEC, 2004.
CASTRO, Yeda Pessoa. Falares africanos na Bahia. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.
FANON, Franz. Pele negra, máscaras brancas; tradução de Renata Silveira. Salvador: Edufba, 2008.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2006.
BÂ, Hampatê Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (Coord.). História Geral da África Vol. I. Brasília: UNESCO, 2010, p.167-214.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Unicamp, 1990.
LUZ, Marco Aurélio. Agadá: dinâmica civilizatória africano-brasileira. Salvador: Secneb: Edufba/CED, 1995.
LUZ, Marco Aurélio. Cultura negra e Ideologia do Recalque. Salvador: Secneb, 1994.
LUZ, Narcimária C. do Patrocínio. Abebe: a criação de novos valores na educação. Salvador: Secneb, 2000.
LUZ, Narcimária C. do Patrocínio. Descolonização e educação: diálogos e proposições metodológicas. Curitiba: CRV, 2013.
MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 2001.
NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Summus, 2003.
NICOLIN, Janice de Sena. Ecos que entoam uma mata africano-brasileira. Salvador: Edufba, 2014.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. As formas do silêncio: nos movimentos dos sentidos. Campinas, São Paulo: Unicamp, 2002.
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
RICOEUR, Paul. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007
PLATÃO. A República (séc. IV, a.C.). São Paulo: Martin Claret, 2006.
SANTOS, Deoscóredes Maximiliano; LUZ, Marco Aurélio. O rei nasce aqui: Oba Biyi, a educação pluricultural africano-brasileira. Salvador: Fala Nagô, 2007
SANTOS, Juana Elbein. Os nagô e a morte. Petrópolis: Vozes, 2002
SILVA, Tomás Tadeu. Documento de Identidade: uma introdução às teorias de currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes. 2000.
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Rio de Janeiro: Imago: 2002.
SODRÉ, Muniz. Reinventando a educação: diversidade, descolonização e redes. Petrópolis: Vozes. 2010.
TRIVINOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 2006.